Movimento de Rotação

Pela manhã, eras linda. Pousaste os pés quentes da cama no tapete engelhado e sorriste no escuro. Abriste a janela e a brisa da manhã condensou nos teus lábios um suspiro quente. A roupa que escolheste na noite anterior olhava-te expectante da cadeira do quarto. Vestiste-a e quando te olhaste ao espelho, antes de sair, ambas sorriram, confiantes, um só organismo de poder e certeza. 

Eras linda; mas uma pedra entrou-te para o sapato. Um esgar de dor atravessou a tua afeição, mas sorriste, porque era tonto deixar que uma pedrinha de nada te estragasse o dia. 

Eras linda; mas a correria até ao trabalho amarrotou a roupa eleita, traçando vincos de desleixo na tua cara quase linda. Passaste a mão pelo vestido para disfarçar os sulcos do rosto e seguiste, com um sorriso esforçado.

Talvez fosses linda; mas à hora de almoço alguém te perguntou como ia a dieta. O prato escarneceu, e sentiste a cor da culpa por estares a comer, embora exactamente aquilo que era suposto. Sentiste a vergonha da tua incapacidade e inaptidão. Engoliste em seco as palavras calóricas que nunca chegaste a dizer, e a tua barriga dolosa insinuou-se no vestido disforme.

Não eras linda; mas no caminho para casa um grupo de coiotes achou-te o alvo perfeito para assobios e piropos, matando a sangue frio a réstia de orgulho que ainda trazias escondida no bolso do casaco borbotado. Andaste mais rápido para fugir ao foco, mas a pedra no sapato era enorme e furava-te o mindinho. Abanaste a cabeça como que a sacudir o desgosto que eras.

Nunca foste linda. Todas as manhãs são uma ilusão que vestes para não sentires o rigor do dia. As máscaras que pões é à noite que as desfazes, na solidão áspera que te reconforta. Tudo em ti é sujo e repugnante: o vestido apertado, a cara-mancha de suor, lágrimas e rímel, o cabelo furioso em caracóis desfeitos. O corpo dói-te, massacrado, e pensas em tudo o que nunca conseguiste ser, em tudo o que talvez nunca sejas, apesar de tudo o que és, mas que a esta hora tarda é muito pouco e não serve para nada. Mas é justo, sabes?: quem te manda achar que mereces o infinito?…

Chora agora, pequena suja, as perdas que mais ninguém reconhece. Talvez te convenças, como eles, que o teu mundo não tem urtigas.

Em breve há-de ser (a)manhã.

E tudo recomeça.


– ana